2/2/96 – 2:30
Fui à cozinha fazer um refresco, porque
estava com muita sede. E nestes passos que dei, nem por um momento pensei em
Deus. Ajoelhei para escrever e pus-me a pensar no próximo espectáculo que tenho
em projecto, na escola. São 3:15; foram, pois, três quartos de hora iguaizinhos
aos daquela pessoa que não conhece Deus… Continuo a pensar no espectáculo…
Outra vez: a minha atenção está na preparação do espectáculo… Ainda outra vez:
como conseguirei fazer surgir a Vénus em cima daquele rochedo?
Parece que todo o Céu se sumiu do meu
coração há muito tempo já. Tenho que fazer esforço de cabeça para entrar nesse
Outro Reino. E parece um reino árido, sem qualquer interesse para a minha
situação existencial. Muito mais mobilizador é o meu projecto na escola: tem
cenários, tem luzes, tem som, tem acção e é preciso pôr isto tudo a funcionar.
Tudo aqui tem a marca da minha mão. Fico derreado de cansaço, mas vejo a obra
surgir!…
Como vou fazer subir das águas a caravela e
mantê-la depois firme em pé?… Oh como é tão mais real este mundo de madeira e
pregos e martelo e tela e tintas e depois a caravela surgindo das águas e
avançando devagar em direcção à frente do palco, até ficar quase em cima dos
espectadores! Como nos fazem mexer por dentro não sei por onde as obras das
nossas mãos! Sobretudo quando nos saem também da cabeça, quando as sentimos
como criação nossa e as damos à luz num doloroso parto! Que faríamos na vida,
que faríamos da vida, sem estas obras das nossas mãos?… Se calhar era melhor
deixar a madeira um bocado mais larga, para não partir… mas espera… é preciso
os entalhes serem mais largos…
– Jesus, acode aqui.
– Que Me queres, Meu amigo?
– Que acudas aqui.
– Porquê? Estás-te afogando?
– Não sei. Estou sendo puxado por duas
forças contrárias…
– Contrárias?
– Pois então não são? Quando penso na
caravela, não sinto nada de Ti dentro de mim.
– E sentes a caravela dentro de ti?
– Olha, acho que sim. Ocupa-me o espírito,
entusiasma-me, ardo na expectativa de a ver de pé, concluída e depois
levantando-se e andando, no dia da festa!
– “Levantando-se e andando”!… E se em vez de
caravelas fossem paralíticos, cancerosos, mortos?
– Ah, Mestre, meu bom Mestre, como me sinto
longe de ver realizada essa Tua Promessa em mim!
– Mas acreditas em que ela se vai realizar?
– Com todas as capacidades da minha alma.
– Que quer isso dizer?
– Que me sinto rude, pesadão, paralítico,
mas acredito com toda a capacidade de acreditar que neste momento tenho… A
madeira se calhar era melhor ser cortada assim… Vês, Jesus, o tamanho da minha
Fé?
– Queres dar-Ma toda?
– A minha Fé? Oh, Mestre! Pega lá! Toma
tudo! Se puderes fazer alguma coisa deste trambolho…
– Meu querido amigo!
– Gostas de mim, Jesus, mesmo assim como
estou?
– Gostas de Mim, Salomão, mesmo assim
fugindo-te por entre sonhos de espectáculos com caravelas?
– Com toda a alegria renunciava a tudo
quanto faço para Te ter a Ti só.
– E que farias tu da tua vida, do teu dia?
– Não sei, nem isso me preocupa: se Tu me
absorveres todo, sei que não vou ter descanso.
– Dás-Me a tua caravela?
– Para que a queres, Mestre?
–
Para salvar e transportar náufragos até ao Meu Cais.
– Jesus, meu Amor! Eu dou-Te tudo, Tu sabes
disso.
– Então descansa. E amanhã deixa-Me
ajudar-te a fazer a caravela.
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