23/1/96 – 3:47
Sofro. Renovo cada dia ao Senhor o pedido de
que me deixe participar na Sua Cruz, mas até no sofrimento que me deu Jesus é
surpresa. Parece que tudo volta sempre à estaca zero. Mas desta vez é pior: à
frieza e à secura junta-se o azedume, a recriminação, a agressividade. Se esta
sensação virasse personagem, ela diria mais ou menos isto: Quem vai ler estes
milhares de páginas? A quem poderá interessar este enfadonho relato de vozes de
algarismos, de “impulsos” interiores, de casos e acontecimentos sem outra dimensão
que não seja a do foro íntimo, a do foro familiar, a do foro profissional? Que
dimensão sobrenatural podem ter estas conversas arrancadas a ferros,
repetitivas, este estendal exibicionista de pretensas novidades que, de tão
repetidas, começam a ficar velhas?
– Desculpa, Jesus, o ter registado aqui esta
voz. Ela parece uma mão que Te dá bofetadas, uma boca a encher-Te de escarros o
Rosto. Mas é que ficou combinado entre nós que toda a verdade deveria ser posta
a nu, lembras-Te? Foram também coisas deste género que Te disseram a Ti, há
dois mil anos, nas esquinas de Cafarnaum, não, Mestre? Não é parecida aquela
voz com as que ouvias naquela noite no pretório de Pilatos, enquanto Te davam
bofetadas e te escarravam no Rosto? Não foram mais ou menos aquelas as palavras
com que também nesse tempo achincalharam a Tua Mensagem e a Tua mais funda
Personalidade? Ah, Mestre: aquilo dói-me especialmente por vir de dentro de
mim. É uma voz songa, cobarde: vem ter comigo aqui sozinho, sabendo que ninguém
me poderá defender, que com ninguém posso partilhar a minha dor. Lembras-Te do
que voltei a pedir-Te ontem, ao rezar o segundo mistério gozoso do rosário –
que me desses ao menos uma prima Isabel para com ela eu poder confidenciar
estas coisas? Mas até agora, pelos vistos, Tu lá achaste que não, que ainda é
cedo. E acho que sei porque é: é que assim, sem ninguém, eu não tenho outro
remédio senão agarrar-me a Ti. És muito ciumento, meu Senhor! O que Te vale é
esse Coração sem paredes e esse Olhar sereno. Com tal Olhar e tal Coração já
conseguiste que eu passasse a considerar lixo tudo o que não és Tu e o Teu
Sonho. Meu querido Carpinteiro, com quem confidenciavas Tu, até aos trinta
anos?
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