Confeitaria “Márcio” 24/9/94 DL
– É importante que contes o Domingo passado.
– Queria entregar as fotocópias, como me mandaste. Falei a uma das irmãs, talvez noviça, muito jovem. Que esperasse para o fim daquela barafunda – disse ela. Estava no fim a barafunda, aproximei-me dela, confiante. A irmã I. estava muito ocupada – informou. Esperei. Pouca gente já no recinto. Eram só dois minutos – insisti. É muito difícil – respondeu. Olhei-a. É senhor padre? – perguntou ela. Hesitei, mas olhava para ela fixamente. Sorri e disse por fim: sou. Alterou-se: então espere aqui um bocadinho. Foi-se e passado um momento reapareceu: A irmã I. não pode vir. É mesmo senhor padre? Sou – disse eu sem pestanejar. Pois... mas ela não pode vir. E eu: não tem dois minutos? Era só para lhe entregar uma coisa. Dois minutos, não mais. Pois – fez ela a despachar – ela não pode... mas o senhor entrega-me isso a mim e eu depois dou-lho. Hesitei. Não sabia o que fazer. Olhei-a e acabei por lhe dizer: Confio em si, como confio em toda a gente. O que está aqui é importante. Fica à sua responsabilidade.
Ela desapareceu com os dois dossiers. Sentia-me mal.
– Tenta dizer o que sentias.
– Cruzavam-se dentro de mim vários sentimentos contraditórios, indefiníveis no momento: a freira não tem dois minutos? Dois minutos?, ela que na carta que me escrevera terminava com “sempre ao dispor”? Fiz bem em ter dito que sou padre? Porque é que a miúda trata os padres de maneira diferente dos leigos anónimos? Que raio de freiras são estas? Porque desconfiaram de mim? Terei feito bem em entregar à miúda os papéis, mesmo que num dos papéis eu tivesse escrito, em letras grandes “Para a Vassula”? Não deveria eu assegurar-me de que os Teus escritos chegariam à Vassula? Teus escritos? E se não são? A freira vai ler, vai achar uma chachada, vai dizer “mais um que se julga vidente” e vai deitar tudo no cesto dos papéis ou então vai mostrar a outros que gozarão com tudo isto.
– Deixa-Me interromper para quebrar o monólogo. Como homem de teatro, sabes que monólogos compridos chateiam.
– Chateiam quem?
– Os ouvintes, evidentemente. Os espectadores.
– Vai haver espectadores/ouvintes para isto?
– Ai Salomão, Salomão! Nunca mais aprendes! Retira do teu espírito o Futuro. Não diz o teu povo que “o futuro a Deus pertence”?
– É este o meu grande pecado, não é, Jesus?
– É. A vaidade. O usurpares para ti a glória que me, Me pertence. É esta a raiz de todos os pecados.
– Faz-me ver os meus pecados como Tu os vês. Rezei assim já tantas vezes!... Porque não me dás esta graça? Queria tanto ver os meus pecados na sua hediondez!... Porque pelo menos isto eu já sei: para Ti os nossos pecados são horrorosas chagas de morte porque amas loucamente as pessoas. Eu sei isto. Faz com que eu o sinta!
– Assim farei, meu Salomão. Não está mal, para já, que o saibas!
– Eu sei, sinto, tenho a certeza que acabarás a Tua obra em mim. Ainda ontem me disseste, naquela Tua aula espectacular, o que é ser nada, relacionando-o com o TEU NOME: EU SOU. Nós, efectivamente, não somos. SÓ TU ÉS. Tenho a certeza de que ando nas Tuas aulas, que aprenderei em toda a medida das minhas capacidades, porque eu gosto muito de Ti e Tu és um professor espectacular!
– E tens aproveitado alguma coisa da Minha Pedagogia, da Minha Didáctica para as tuas aulas?
– Oh sim! Sim! Sim! Acabou ontem a primeira semana de aulas. Ando suspenso, como quem não sabe o que se passa. Só sei que és tu que estás actuando nas “minhas” aulas (senti que tinha que pôr as aspas!). Sei ou sinto, não distingo bem. Mas é uma certeza cá dentro: dialogo muito e os alunos estão suspensos das suas próprias (devo pôr aspas?) descobertas. Não se ouve uma mosca. Só tu, TU, TU Te ouves! Ah, Jesus, sabes como foi repentinamente que me saiu esta última frase e como me senti feliz ao escrevê-la! Sinto mesmo assim: és Tu que ages nas “minhas” aulas! Conseguimos falar com muito respeito na merda![1] Longamente. Conseguimos ver que na Tua Criação não há nada de impuro! Neste contexto conseguimos até recordar como Tu, Tu mesmo, dito com o Teu Nome, amavas as prostitutas! Eles estão de olhos arregalados e dão testemunho de como a sua alma se está abrindo!
– Não está na hora de voltarmos ao Domingo passado?
– Pois... Entreguei os papéis à miúda e vim para casa sozinho ao volante do carro (um carro afinal é útil!) dominado pelos acontecimentos do dia, entre feliz e inquieto. Acabei por telefonar à freira, conforme a miúda sugeriu. Senti vagamente que deveria fazer mais isto da minha parte. E que Te competia a Ti fazer o resto. E o resto é tudo: fazer desaparecer os papéis ou dar-lhes seguimento. Fiquei sereno. Só queria que a Tua Palavra não fosse achincalhada.
– Mas continuaste duvidando de que aquilo fosse Palavra Minha.
– Mais ainda do que antes. Por vezes tenho a sensação de que tudo não passa, mais uma vez, de pura vaidade minha. Mas outras vezes sinto a Tua Voz segredar-me: embora imperfeito na forma, tudo isto é Meu na essência!
– Sentes mesmo que essa Voz é Minha? Como? Porquê?
– Porque sinto de forma clara que estás comigo. Estás presente. Presente! Presente! Deste-me provas disso de forma espectacular, no princípio. E vais-me dando todos os dias sinais claros da Tua Presença! E porque Tu o dizes! Continuamente. Através da Vassula, chamando a atenção para a Escritura Santa, onde está clara a promessa da Tua Presença sempre, em cada criatura, em cada ser humano como se fosse único, sempre-sempre, mesmo quando a Tua Presença não é sensível, mesmo quando na alma é absoluto o deserto.
– Deserto! Sabes agora como é importante para Mim o Deserto! Saberás e experimentarás mais intensamente ainda o Deserto. Eu estive no Deserto. O grande Deserto, para Mim, foram as horas, todas as horas da Minha Paixão. “Pai, porque Me abandonaste?”, lembras-te?
– Sim, Jesus, meu único Amor!
– É sincero isso?
– Absolutamente sincero, Jesus. Tu sabes que eu não conheço, não tenho nenhum verdadeiro amor além de Ti.
– Mas isso...
– Eu sei o que vais dizer: Mas isso é não cumprir o segundo mandamento, “amarás o teu próximo”. Já sei qual é a Tua maneira de dar aulas: as tuas perguntas, as tuas observações são todas provocações. Pois bem, provoca, Jesus, provoca sempre, não me deixes dormir nas Tuas aulas.
– Vá, diz isso que estás a pensar.
– Também estou a dar aulas assim: provocando. Viste como ralhei à miúda que disse que a aula lhe tinha sido indiferente? “Então sai!” – disse-lhe eu – “Então odeia as aulas! Ou ama-as! Indiferente é que não! Pior que tudo é a indiferença!”
– Apre!
– Não fiz bem?
– Que achas?
– Acho que sim, que sim, que sim! Aquilo saiu-me tão espontâneo, que tenho agora a certeza de que foi Teu. É Teu, é Teu, porque Tu dizes: “Já que não és frio nem quente, Eu te vomitarei da minha boca para fora!” É Teu, Jesus! E mais: ao entregar-lhe o trabalho corrigido senti nela, na mesma Sónia, tudo menos indiferença! Não és Tu que estás curando? Não são as curas do coração as mais espectaculares? És Tu, Tu, TU! És Tu que estás a dar as minhas aulas. Assombroso Mestre! Não saias nunca das minhas salas de aula. Actua naqueles coraçõezitos, actua em mim. Derrama o Teu Espírito de Sabedoria e de Graça em todas as minhas salas de aula enquanto eu der aulas... olha: até à minha reforma! É só disso que eu tenho medo: de que Tu me saias da sala!
– Porque choras?
– Porque sei que sem ti as minhas aulas são uma chachada! (Choro. Jesus escuta). E tenho medo de Te perder!
– Eu não sou como uma chave que se perde pelo Teu bolso roto.
– Eu sei, Jesus, mas tenho medo, que queres?
– Tu sabes que Eu te amo. Escreve, não tenhas medo: loucamente!
– Acho que é demais para mim.
– Para Mim não há demais! Nunca.
– A propósito, agora reparo: não ficou completa aquela do segundo mandamento...
– E tem que ficar completa?
– Bem, eu...
– E se deixasses as pessoas saber o que Eu sei que tu sabes?
– Pronto, Mestre! Às tuas ordens!
– Eu não dou ordens!
– Ai não???!!! Então o que é isto tudo que Tu me tens feito?
– Mandei alguma coisa?
– Mandaste.
– E custou-te obedecer?
– Às vezes.
– E outras vezes...
– Obedeci tão prontamente, que fiquei espantado! Porque se tratava de coisas ridículas!
– Por exemplo.
– Dar uma cambalhota.
– E que mais?
– Até me custa a dizer... Comer terra, folhas mortas no chão...
– E...
– Passar quase de gatas entre dois arbustos para não estragar uma teia de aranha.
– E obedeceste prontamente. Porquê?
– Porque andava feliz. Só queria fazer a Tua Vontade.
– Eu não mando, Salomão. Eu amo.
– Falta só um bocadinho da folha e tenho que ir arrumar. Quero contar a felicidade do Domingo passado.
– Tens poucas linhas...
– Vou tentar: quando a Vassula chegou, eu disse Lindo Profeta que Tu escolheste! Depois ela ficou de costas para mim. E jeitosa! – exclamei repentinamente. – És o máximo a escolher os Teus Profetas! Acho que chorei.
[1] Felizes os que se não escandalizarem com palavras assim e, em geral, com a linguagem descuidada destes Diálogos.
Gostei, Paz e Bem
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