– Reza primeiro. Acalma-te.
– Que rezo?
– Reza. Rezar o que é?
– Estou frio. Não sei. Não me ocorre resposta nenhuma. Estou assim muitas vezes. Não te, perdão, Te ouço (Chamou-me a atenção a palavra “ouvir”).
– E então? Já sabes o que é rezar?
– Estar à escuta?
– Isso. Que sentes?
– A caneta querendo inclinar-se como ontem... Mas desapareceu a força que a faz inclinar... Não, é muito débil a pressão, eu consigo contrariá-la... Acabou. Acabou a pressão. A caneta está abandonada ao sabor da minha mão. Esta caligrafia é a minha caligrafia normal. Estou frio. Estou a ficar vazio. Deixado ao sabor de mim próprio não presto. Não tenho poder. Não tenho vida. Sou nada. Nada mesmo.
(Ouço debilmente a voz do Senhor:)
– Tenta exprimir isso.
– Nada. É um vazio, como se todos os órgãos do corpo funcionassem automaticamente, sem princípio coordenador e vivificador... Não fujas, Jesus!
– Eu nunca fujo!
– Então porquê esta sensação de vazio?
– Vazio! Vácuo! Nada! Foi daí que surgiu a Criação!
– Tremo. Escrevi isto n’ “O Oitavo Dia”[1]. Temo que aquilo não tenha sido dito por Ti.
– Não te angusties. A tua mão está há muito tempo a ser guiada por mim, perdão, Mim!
– É tão débil a tua, TUA voz, vês? Tenho que emendar, hesito...
– Continua a escrever.
– O quê, Senhor?
– A tua indigência. Lembras-te do domingo... (Olhei domingo e...)
– Escreve Domingo com letra maiúscula! Lembras-te do Domingo passado?
– Sim, meu Senhor! Disseste-me de manhãzinha que eu iria ter uma surpresa.
– Como disse EU?
– Exactamente assim: “Vais ter uma surpresa”
– Como soubeste que era EU?
– Não sei bem. Soube e acreditei.
– E cumpriu-se o que EU disse?
– Cumpriu. Como cumpriu!
– Conta.
– Trouxe cadernos. Dois cadernos. Eu sabia que Tu querias que eu escrevesse. Era uma sensação agradável e exaltante. Escrever depois de Tu me teres tocado e levantado!
– Isso. Não hesites. Isola-te do barulho do café.
– Eu comecei a escrever sem saber o quê. Pedi-te que escrevesses Tu. “Escreve, Meu Deus!”. No princípio, tudo normal. Depois a caneta fugia-me irresistivelmente para cima, em direcção às linhas superiores. Não entendia. Se eu escrevesse na direcção dessa força, acabava por cruzar as linhas já escritas e toda a escrita ficaria ilegível. Eu tentava segurar a caneta na linha horizontal (eu sempre escrevi muito horizontal e nunca gostei de papéis com linhas), mas era impossível.
– Impossível?
– Sim. Não sei explicar, mas eu sentia que o que se estava a fazer era obra Tua.
– Era a tal Surpresa?
– Isso. Eu tinha a certeza ...
– Certeza?
– Certezíssima que eras Tu.
– E por isso...
– Por isso era impossível resistir-te, perdão, Te! (Quis-me parecer que Jesus sorriu, feliz)
– Como assim? Sentiste-te violentado?
– Não!!! De modo nenhum! Eu queria... eu queria o que TU quisesses! (Senti Jesus tranquilamente feliz. Sem me aperceber disso, passei neste momento a escrever com a caneta em posição anormal: a mão quer manter-se na normal posição de escrever, mas a caneta inclina-se muito para a direita ...). Onde íamos, Jesus? (A caneta voltou à posição normal)
– Na violentação. Na liberdade.
– Custa-me muito a entender isso.
– Tu és só uma criatura.
– Sim. Foi das coisas mais lindas que me ensinaste nos últimos tempos, meu querido Professorinho! (Foi como se Jesus me apertasse a mão).
– Fala nisso.
– Em quê?
– Na ternura. Escreve com maiúscula: TERNURA! Como sabes, ninguém te considera terno…
– Sim. Sou bruto. Casca-grossa. Alheio, aluado. Sem o mínimo de empatia.
(Estou a considerar que “empatia” é uma palavra muito científica, cara, e isto cortou-me o fluxo da Presença – embora sempre débil – de Jesus). Vês? Com tanta facilidade me desprendo de Ti! Prende a minha atenção! Não me violentas! Eu quero! Eu quero muito que tudo o que eu tenho seja teu, perdão, TEU! Vem, Jesus! É Domingo! É o Teu Dia.
– Todos os dias são meus. MEUS! Eu curo ao sábado, mas também à segunda, à quinta ... E posso deixar de curar ao Domingo.
– Como? Estou embaraçado.
– Refiro-me a curas sensíveis. O Domingo é o Dia da cura...
– Que horror, Jesus! Não sei o que estou a escrever. Parece-me ter entrado num beco e ali rodo, sem saber por onde sair. Que sensação! Apetece-me gritar como uma criança perdida: Pai!!! Estou parado à espera que movas a minha mão. Ela controla completamente – ou quase – a caneta. Que faço? Deixo de escrever? (Martela-me na cabeça com insistência – embora sonolenta – a ideia de que estava a explicar algo que interrompi. Tenho que ir ler, para saber o que é... Que sensação horrível! Abandonado num deserto. Sem ter certeza de nada, nem da exactidão, nem da sinceridade das palavras que escrevo. Mas continuo escrevendo. Sinto muito vagamente que é isso que Jesus quer. Eu sei, mas só com a “cabeça”, que Jesus está aqui. Escrevo sem convicção, paro muitas vezes, seco... Vagamente senti agora que devia acabar a explicação da escrita do Domingo passado. Afinal não foi preciso ir reler. Debilmente, Jesus:)
– Vá, Salomão, explica o Domingo.
– Explico a quem?
– Explica. O resto não é contigo!
– Eu sentia a caneta violentamente dirigindo-se para cima, para cima. A última palavra que está no texto é “Escrevo”. Eu ia a dizer qualquer coisa como “Escrevo”... não, agora me lembro, eu não sabia absolutamente nada do que ia escrever a seguir. Eu só sabia que tinha que escrever. Subitamente, ao verificar a direcção da caneta para cima, para o alto, cruzando-me as linhas todas já escritas, para não “borratar” o texto todo com palavras (que aliás não me vinham ao espírito, nenhuma!), a caneta passou a fazer traços, traços leves, aqui, ali, sempre para cima, como que inutilizando todo o texto escrito. Por fim um pouco até voltados para a esquerda, no canto superior esquerdo. Uma curiosidade: eu tinha escrito, não sei porquê, o nome da Confeitaria errado: “Márcico”! Pois um dos traços, talvez o mais carregado, cortou precisamente o c que estava a mais! Deixei de escrever. Ainda tentei explicar na altura o fenómeno, mas Deus dissuadiu-me, isto é, eu sentia que não devia fazê-lo. Era isto que querias, Jesus? Estás tão calado...
– Eu tenho vários processos de fazer ouvir a minha voz.
(Vagamente – tudo vagamente! – senti que deveria escrever “Minha Voz” com maiúscula. Mas pensei também que talvez fosse só por influência das mensagens, Mensagens, ditadas à Vassula. Jesus, porém, de forma clara, mas pouco “audível”, atalhou logo:) E se fosse?
– Jesus, meu Jesus, meu... não sei como diga... meu enorme, gigantesco, incomensurável Deus Criador, Voz Tremenda que no Princípio disse e tudo foi feito, meu querido, terno Mestre ... Ai é verdade: a Ternura! A Ternura. Estávamos algures a falar na Ternura ...
– São 11 horas. Vai imediatamente para a Missa! Corre![2]
– Quero que contes tudo.
– Estou feliz por fazer o que Tu queres: cheguei à Missa atrasado. Estava-se a ler já o salmo responsorial após a I Leitura. Era para mim.
– Que ouvias?
– Não me lembra. Sei que era para mim.
– Queres fazer um esforço?
– Tenho medo que não resulte. Não sei... Tenho medo de te estar a pôr à prova...
– Escreveste te com minúscula!
– TE!
– Sim, e depois?
– Depois tudo parecia dito para mim especialmente. A Epístola de S. Tiago: a fé sem obras é morta. A antífona a seguir.
– Antífona?
– Aclamação do Evangelho? Já não sei como se chama.
– Estiveste muito tempo longe...
– Acabou por ser bom esse tempo, não foi?
– O Evangelho.
– Sim, o Evangelho era de Marcos: “Quem dizem os homens que Eu sou”? A resposta de Pedro: “Tu és o Messias!” Assim com todas as letras! Exactamente o que o povo judeu esperava. Mas quando Tu a seguir dizes que vais sofrer, Pedro escandaliza-se. Ele não conhecia os teus, Teus caminhos. Os caminhos da Libertação. Porque lhe chamaste Satanás? Ele tinha o poder de te, Te tentar?
– Ele era naquele momento a autêntica voz de Satanás em todos os tempos!
– Depois, no Evangelho, a mensagem: é preciso levar a Tua Cruz e seguir-Te. Exactamente para mim! Estava admirado de esta mensagem vir em Setembro: julgava que deveria estar inserida na Quaresma.
– Mas não é tudo.
– Não. Ao dirigir-me para a Missa senti um impulso, um desejo de me colocar junto à porta do fundo, eu que sempre me coloco à frente. Sentia ressoar dentro de mim a palavra do fariseu e do publicano.
– No lugar onde te sentaste, que aconteceu?
– Estava uma criança minha conhecida. Ela sorriu-me. Estavam outras à beira. O Vítor, o pequenito que eu conheço, foi-me informando que os outros eram todos seus irmãos e irmãs. Comecei a olhar para todos. Acariciei-os, meti conversa com eles, mais com gestos do que palavras. Sentia-me muito feliz. Ao mesmo tempo estava muito atento, vivendo a Missa.
– Conseguias?
– Perfeitamente.
– Disseste à tua filha que irias ter com ela para irdes almoçar fora. Vai. Bom almoço.
– Tenho receio de não conseguir escrever aqui.
– Porque não sais? Preciso de silêncio.(Levanto-me e saio. Já em casa, à escrevaninha da L.:) Não estás melhor aqui?
– Sim, mas... a minha mão não quer mexer-se... Paro... Silêncio e vazio por dentro. Que faço?
– Reza. Sabes que Eu estou contigo.
– Sim, mas...
– Reza.
– O quê?
– Rezar o que é?
– Pedir?
– Pedi e recebereis.
– Jesus, move a minha mão! Envia o Teu Espírito e aquece o meu coração! Põe o Teu dedo no meu coração! Põe o Teu dedo no meu ouvido e cura-me.
– Ajoelha-te! (Executo)
– Continuo vazio.
– Deixa o Espírito falar em ti.
– Como se faz isso?
– Deixando.
– Peço? Espírito Criador, reza em mim!... Não acontece nada!
– Já aconteceu!
– Como assim?
– Não estavas a contar o teu dia?
– Jesus, a frase não está muito correcta.
– Obrigado, senhor professor! Vá, que estás à espera?
– Devia ser “ de que estás à espera”.
– Não dás para mais hoje. Enredas, enredas... Conta o que se passou no teu dia de hoje.
– Assim sem te ouvir?
– Não tenhas medo. Ouço-te eu... Emenda: EU!
– Vês, Jesus, sai tudo mal!
– Não sejas engonha. Conta. Onde íamos?
– Nas crianças. Sentia-me muito feliz acariciando os pequeninos!
– Mais.
– Eu tinha pensado que hoje seria o dia de me revelares mais um pouco – eu queria um muito! – o Mistério da Eucaristia...
– Pensas demais. E?
– E fui à comunhão. Hesitava se receberia a Hóstia na mão ou na língua. Queria recebê-la na língua, mas como toda a gente a recebia na mão, não quis armar-me em humilde. Mas imediatamente antes houve alguém que a recebeu na língua e eu fiz o mesmo.
– Porquê?
– Parecia-me o dia em que me querias ensinar a Humildade. Receber a Hóstia na mão é sinal de cristão “emancipado”...
– E tu não queres ser emancipado?
– De quem? De Ti? Não! Quero o contrário!
– E depois?
– Depois de receber a Hóstia senti uma coisa estranha... Frieza misturada com amargura... Não sei definir. Imediatamente interpretei isto como um sinal da minha indignidade. Decididamente, eu achava que Tu hoje estavas decidido a mostrar-me a minha pequenez, o meu nada.
– Nada?
– Sim, mais ou menos. Às vezes julgo-me alguma coisa, grande coisa às vezes, mas queria muito sentir-me mesmo isso: nada.
– Vá, anda. Conta a da Confissão.
– A certa altura da Missa senti que me devia ir confessar ao Padre P.
– Custou-te?
– Surpreendentemente, não. Eu há muitos anos que não me confesso. Achava que não era preciso... e julgava-me “emancipado”! Mas Tu, através da Vassula, mandaste-me confessar todos os meses! Que estopada! – pensei eu. Onde vou arranjar pecados para tantas confissões? Mas ficou-me esta da Confissão martelando-me cá dentro. E foi muito descontraidamente que ao fim da Missa fui à sacristia e disse ao meu pároco, ao meu colega professor: “Quero-me confessar”. E surpreendi-me com a facilidade com que este pedido me saiu. Ele disse que não podia, mas ficava para um dia destes... Saí contente.
– Vamos ao passo seguinte.
– Jesus, parece-me que as Tuas perguntas são só-só imaginadas por mim.
– Conheces a minha resposta. Escreve-a.
– Todas as vezes – e foram já muitas! – que eu Te pus o problema de isto ser só imaginação minha, Tu sempre respondeste: “E a Imaginação não é uma faculdade que eu dei à criatura humana? Porque não haveria Eu de me servir dela?”
– Vamos ao passo seguinte.
– Desejava muito continuar a escrever. Mas apetecia-me também caminhar na rua como é meu costume, pensando em Ti, pensando em tudo isto. Hesitava no cruzamento. Neste preciso momento começou a chuviscar. Se me não vinha embora, molhava-me todo.
– E a chuva...
– Foi para mim um sinal de que Tu me querias a escrever.
– Mais. Está tudo?
– O que veio a seguir também me prendeu a atenção: a minha filha esperava-me exactamente à porta. Queria ir comigo ao café. Fomos. Eu sabia que a J. não tinha cigarros, porque se lhe acabou o dinheiro. Eu sei o que é o vício do cigarro. Ela precisava mesmo de fumar. Tomou o café. Olhava, nervosa. Eu, que tinha comprado, momentos antes, sem ela ver, um maço de cigarros, pus-lhos sobre a mesa. Repentinamente espantada e feliz, disse: “Estava precisamente agora a ver a quem podia cravar um cigarro!” – “Pois aí tens – respondi eu – Um milagre é isto!” E ela: “Mas pareceu-me mesmo um milagre!”
– E foi um milagre? Achas?
– Sim. Milagres não são só as curas espectaculares do corpo. Os maiores prodígios acontecem na alma, sem que ninguém os veja.
– Alto aí! Não devia ser Eu a dizer isso?
– E não foste? O que eu escrevi foste Tu que mo ensinaste!
– Mais nenhum prodígio, por hoje?
– Não sei. Mas conto. Disse à J. que íamos almoçar fora. Ela ficou contente. Mas sugeriu que não fôssemos ali à esquina. Queria ir mais longe... “E depois vamos tomar café àquele sítio...” – acrescentou ela. Eu sabia: tratava-se de ir ao café onde ela foi há dias comigo candidatar-se a um emprego pedido por anúncio...
– Que tem isso de prodigioso?
– Vi nisso um outro sinal: ela quer muito aquele emprego e eu falei-Te insistentemente nele, para que lho desses.
– Depois de...
– Depois de ter pensado em pedir a alguém para meter lá uma “cunha”. Foi muito giro: nesse preciso momento ouvi-Te nitidamente: “E Eu, Salomão? E Eu?” Fiquei arrependido e triste por não me ter lembrado de ti, Ti.
– E agora? Acreditas que eu “meta a cunha”?
– Tenho medo, Senhor: não sei se tenho o direito de Te meter nestas coisas tão triviais, não sei se Te estou a pôr à prova, não sei se... Olha, pronto: tenho medo de acreditar cegamente e depois apanhar uma desilusão! Vês como eu estou? Sinto-me mal!
– Vá, ainda não acabaste.
– Mas estava feliz. A J. guiou os meus passos no princípio da tarde. Não sabia o que havia de fazer. Tinha projectado outra coisa...
– Tu e os teus projectos!
– É verdade: os meus projectos têm-me saído todos “furados”. Não executas nada do que eu projecto. Mau!
– Mau, Eu?
– Sabes que o disse porque gosto muito de Ti.
– Apesar desta frieza?
– Eu sei que amanhã me vais dar mil por este raquítico amor de hoje.
– Mil quê?
– Mil coisas que ninguém vê.
– Não faças literatura.
– Fica comigo, Jesus!
– Olha: e o texto da manhã?
– Sim, o texto da Escritura com que iniciámos – posso dizer assim? – a manhã! Eclesiastes, 9, 1: “Apliquei então o espírito ao esclarecimento de tudo isto e vi que os justos, os sábios e as suas obras estão na mão de Deus. O homem ignora se é digno de amor se de ódio. Tudo é possível”. Parecia exactamente aplicar-se a mim: “O homem ignora...”, “Tudo é possível”... E era isto um domingo, Domingo! Lembro-me agora que ao dar o maço de cigarros à J., perante o espanto dela, lhe disse: “Hoje é Domingo. O Domingo é o dia da generosidade”.
– Dando cigarros?
– Se com cigarros se puder curar a alma...
– Bela frase! Está tudo?
– Estou de joelhos, estive todo este tempo de joelhos, faltam cinco minutos para as 20 horas. Doem-me os joelhos, doem-me as costas, sinto-me mal por fora e por dentro... Não sei o que para aqui escrevi... Desconfio de que nada disto seja Teu!
– Repara que Eu não disse nada, a não ser que contasses o que te aconteceu. Contaste a verdade?
– Sim.
– Levanta-te. Eu te abençoo.
[1] Um pequeno livro sobre as potencialidades fónicas do texto poético, que escolhi fazer, por imperativo profissional.
[2] Eu, que era padre e frade franciscano, havia abandonado todas as práticas religiosas a partir do momento em que deixei o convento e o ministério sacerdotal. Agora Jesus pede-me com veemência que as retome e leva-me a vivê-las com uma emoção nova. Em breve, porém, o Mestre me irá indicar outros rumos, inteiramente inesperados.
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