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Confeitaria “Márcio”, 16/9/94 DL
– Sinto que queres escrever, Mestre!
– Como sentiste?
– Levantei-me com um grande desejo de escrever.
– Desejo? Os teus desejos...
– Já sei, Mestre: vais dizer-me que os meus desejos não são necessariamente os Teus!
– E são?
– Não sei. Eu queria muito-muito-muito que fossem!
– E não tens medo de te enganar?
– Muito-muito-muito!
– Mesmo quando te digo repetidas vezes que estou sempre-sempre-sempre junto de ti, dentro de ti?
– Mas eu se calhar tenho muito pouco espaço para Ti. Ah, quem me dera que todo o meu espaço fosse Teu!
(Silêncio. Nestes momentos uma série de coisas me vêm à mente: estou a escrever mal?... a escrever-me? Jesus quer que pare? Não será isto puro desejo de ser vedeta? Fico à escuta, à escuta, à escuta, mas o meu espírito voa...)
– Espírito Consolador, permanece em mim! Trespassa-me, ensopa-me, penetra os mais íntimos, os mais ínfimos recantos de cada uma das minhas células!
– Porque rezaste ao Meu Espírito?
– Não sei. Desde o início que Vos sinto separados.
– Separados?
– Insiste dentro de mim uma voz, uma Voz dizendo: “Distintas! Distintas, Salomão! Três Pessoas Distintas!”
(Ao escrever a frase entre aspas a caneta inclinou-se para a esquerda. Tenho sempre dúvidas. Não será sugestão minha?)
– Donde vêm as tuas dúvidas, Salomão?
– De mim, certamente! À Vassula insistes sempre em que és, com o Pai e o Espírito, UM e o MESMO! Comigo insistes na distinção!
– Deixa as coisas assim por enquanto.
– Ai, Jesus, gosto tanto de conversar contigo… Sabes o que me ocorreu?
– Claro que sei. Mas diz lá: as pessoas não sabem.
– Que isto tem a ver com o meu jeito para o teatro.
– E que te respondi Eu logo nessa altura?
– Foi como quando se tratou da imaginação: que o jeito para o teatro é um talento Teu. Teu e de mais ninguém! Tu serves-te dos talentos inatos!
– Achas lógico?
– Lógico! Perfeitamente lógico! Não seria lógico, isso sim, contrariar os talentos dominantes que nos deste ao criar-nos!
(Silêncio. Fico sempre algo tenso, algo angustiado quando se criam estes silêncios. No café o rádio está ligado. Locução alterna com música. Não sei se Jesus me quer num lugar isolado, mais silencioso. Sempre gostei de estar no café: há pessoas à minha volta, há movimento, tenho a sensação de estar rodeado de vida e ao mesmo tempo consigo isolar-me totalmente dentro de mim. É aqui que escrevo, sempre escrevi aquilo que requer maior atenção, desde a correcção de testes até às páginas de maior intimidade com o meu Deus. Às vezes choro. Disfarço sempre, claro, como posso).
– Falta muito ainda, Salomão!
– Que tem isto a ver com a conversa, com o assunto anterior?
– É preciso que tenha?
– Não. E é isto que mais me agrada em Ti, Jesus, meu espectacular, meu desconcertante Mestre! Amo a lógica das Tuas aulas! Não cansam! Deixas falar! Cada aula é uma descoberta! Muitas descobertas! À primeira vista descobertas desconexas. Mas depois vai-se vendo , vai-se vendo e todas as descobertas se vão integrando numa harmonia tão gostosa, tão gira! Tanta Paz, tanta Paz, Jesus! (Estava com medo de me esquecer de acrescentar:) E essa cara! Essa expressão tranquila à espera que eu descubra. Adoro essa Tua cara, esse Teu sorriso, a dizer sempre que acredita em mim, que está feliz pelo meu trabalho, que sabe que eu vou descobrir!
– Que estás descobrindo agora?
– Duas coisas: que Tu me deixas usar os meus termos, a minha linguagem, quando falas; e que me estás a dar uma lição de didáctica e de pedagogia!
– Querias aplicar tu próprio esta lição?
– Oh sim! Quem me dera ser um professor como Tu!
(Enganei-me. Pus uma interrogação em vez de uma exclamação. Tive que riscar, o que acontece várias vezes. É o fluxo torrencial do diálogo que provoca estas atrapalhações! Eu que sempre escrevi tão devagar! Agora, por exemplo, o que aconteceu foi que a interrogação que coloquei à frente da minha exclamação é já a interrogação que pertence á próxima pergunta de Jesus:)
– E não podes? (Ser um professor como Eu, entenda-se!)
– É muito difícil! Primeiro, porque eu ocupo ainda muito espaço de mim com uma tralha imensa que andei juntando ao longo de tantos anos, uma tralha inútil; depois porque há o programa para cumprir; depois porque eu tenho, bem assimilado, o reflexo do “ensinador”, isto é, aquele que mete coisas dentro dos outros. Adquiri esta mania, uma mania muito funda e poderosa, no seminário, para ser padre, nos livros e nas lições de pedagogia, para ser professor...
– Uma tralha pesada, realmente, professor Salomão!
– Como tiro isto daqui, Jesus?
– Eu tiro, não tenhas medo.
– Ia a escrever “não te preocupes”...
– Foi melhor não escreveres. Vigilante deves estar sempre. O Inimigo não desarma. Lembras-te do olho?
– Oh sim!
– Diz-me o que viste.
– Um olho do tamanho de um ovo grande, como que atrás de névoa ou de água, deslizando para trás e para a frente, como que tentando ver, esquadrinhar, sem descanso...
– Não está lá muito bem expresso!
– A culpa é tua! Porque não me dás as palavras exactas?
– Oh, as palavras! As vossas palavras!
– Não prestam, pois não?
– Pior! Encobrem! Prejudicam!
(Perturbação no fluxo do diálogo. Paragem. Tenho medo que a resposta de Jesus seja minha: está escrito n’ “O Oitavo Dia”.)
– Olha, Jesus, deixemos isso das palavras. Eu também não gosto especialmente delas. Gosto muito mais de silêncio... deste silêncio em que te ouço! Tenho tantas coisas a conversar contigo... Vês? Como escrevo contigo? Contigo? conTigo? Vês? Complicações de um professor de Português! Mas olha, do que eu gostava era de falar do tal olho: imediatamente o identifiquei como o olho do Diabo sempre espreitando, sempre tentando apanhar um ponto fraco onde espetar a sua farpa, onde engatar o seu anzol. Mas coitado!, acho que vê mal quando Tu estás comigo: a Tua Luz, a Tua água encandeia-o, corta-lhe a visão, mantém-no à distância. Tu és muito-muito querido! A gente sente-se protegido! É cá uma paz! Às vezes dá-me vontade de enfrentar o Demónio! Enfrentar mesmo! Lutar directamente contra ele! Caraças! Dar-lhe dois murros nas ventas! Até choro de entusiasmo!... Eu sei, eu sei: só Contigo poderia entrar nesta luta. Já me apeteceu várias vezes interpelá-lo, ordenar-lhe que desinfecte, que desapareça, que largue as pessoas, chamar-lhe cabrão! Mas tenho medo... Medo de falhar! Ah, esta falta de fé! Ah, este meu raquítico amor por Ti!
– Apre! Escreveste quase duas páginas sozinho!
– Não me leves a mal, Jesus! Se soubesses como eu queria amar-Te, como eu queria que o Teu Reino viesse para expulsarmos Todos o Príncipe das Trevas, o Pai da Mentira!
(Jesus ri-se às gargalhadas! Acho que das minhas asneiras, não sei até se das heresias que escrevi. Nem me interessa reexaminar o texto! Jesus ri-se e isso me basta!) Jesus, agora reparo que escrevi “Todos” com letra maiúscula! Foste tu que quiseste, não foste?
– Fui. (Jesus ainda se ri).
– Explica um pouco isso da união, do “Nós” que tanto insistes em dizer à Vassula. Acho tão estranho que se possa dizer assim…. Parece uma heresia! Manifesta um amor tão incrível, tão imedível, que nos esmaga! O Criador assim tão familiar... assim tão tu-cá-tu-lá com uma criatura, não gerada, criada, feita com as “mãos”! Como é possível, Jesus? Se eu entendo um dia este Amor, morro esmagado! Não morro, Jesus? (Choro...) Não? Então vivo? Consigo viver? Sem medo? Leve? Como andando, rodopiando feliz na palma da Tua Mão? Vai ser assim? Então força, Jesus! Deixa-me antever, ante-sentir isso agora!
– Ias escrevendo mais uma página sozinho!
– Ai se eu conseguisse que os meus alunos fizessem a mesma coisa... Que descanso que isso me dava!...
– Porque não tentas?
– Jesus, impossível! Eles estão sempre à espera de que o professor diga tudo. E que os chateie pouco.
– Tenta. Espera que a alma deles se abra.
– A alma? Numa aula das nossas?
– Sim, numa aula das vossas. Havia de ser nas de quem?
– Pois... Percebo. Então é preciso chegar à alma deles nestas aulas que temos...
– Claro que é nas aulas que tendes. Eu actuo sempre naquilo que tendes. Nas aulas e em tudo o resto. O mal é não me deixardes actuar a Mim! Eu posso atingir as almas seja em que situação for!
– Pois... Mas a falar do Fernando Pessoa, do Torga, de valor estilístico das vogais, de aliteração, de assíndeto, de presença telúrica... Como é que no meio desta tralha poderão os alunos ver-Te? Faz-me isto aflição! Eu não gosto de poucochinhos! Eu quero logo tudo! Como Tu, não?
– Não. Eu quero tudo, mas espero. Espera. Espera Comigo.
– Sim. Está-se bem Contigo aqui escrevendo, na borda da estrada passeando Contigo só, no quarto rezando sem ninguém a perturbar - nem a mulher! Mas como se está Contigo frente a uma televisão fazendo companhia aos filhos, em casa e na rua a resolver problemas ou simples assuntos familiares de rotina, na escola dando textos em que muito raramente aparece o Teu Nome, passando intervalos em que falar de Ti é pieguice, talvez até conversa beata que em vez de atrair afasta as pessoas? Como Te vou anunciar todo o tempo, Senhor?
– É muito simples: amando-ME!
– É mais fácil de dizer do que de fazer. Tu não queres um amor que não faça, pois não? (Silêncio) Porque não respondes? Ficaste zangado com o meu descaramento?
– Eu nunca fico zangado. Apenas triste. Já tinhas obrigação de saber como se ama. Mimalho!
– Ora toma! Jesus, outra vez mimalho! Gosto tanto que me insultes! Fico mesmo feliz! Já tantas vezes me insultaram com desprezo, com ódio!... Insultos por amor sabem tão bem! Parecem fintas de amor. O Amor é sempre surpreendente! O Teu Amor então... – desculpa, todo o Amor é Teu! – o Teu Amor nunca faz duas coisas iguais! Que o digam estes últimos dias! Que mais me reservará o Teu Amor? Já sei pelo menos uma coisa: tudo o que fizeres virá de surpresa, mesmo os momentos de sofrimento, como é hoje o caso: é sexta-feira e escrevo, desabafo, dialogo Contigo e estou muito feliz. Sei mais: que as surpresas serão inesgotáveis!
– Muito falas tu hoje!
– És Tu que tens a culpa. Quem Te mandou destravar-me o pensamento, destravar-me a mente... destravar-me... o quê? O espírito? O coração? Sei lá o que é isto, sei lá o que digo! Destravaste-me o amor, Jesus, e isso me basta.
– Estamos no fim da folha. Já passa das onze!
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