E reconheci, de surpresa em surpresa, que desde o meu nascimento, antes dele até, eu vinha sendo cuidadosamente guiado para aqui, através de perigosíssimos caminhos, como se a minha vocação fosse um inestimável tesouro que alguém, correndo todos os riscos, tivesse que transportar intacto até ao seu destino.
Cada um de nós tem, pois, um lugar único na Harmonia universal. Mas nós nascemos na Cidade, que desde o primeiro instante da nossa existência tudo fez para nos moldar segundo as exigências do seu próprio projecto. E é preciso advertir em que o projecto da Cidade é satânico − é em tudo oposto ao Projecto que trazemos inscrito no âmago do nosso ser. A cada um, pois, ela vai traçando um futuro, sempre através de mais ou menos fundas frustrações, sempre mais ou menos doloroso, mas sempre mutilador. Assim, a maior parte de nós vai-se conformando e ajeitando o melhor possível no buraco que a Cidade lhe destinou, porque, enfim, não há outro remédio. Raros são aqueles que se confessam inteiramente realizados. E mesmo esses, se de repente lhes ficasse à mostra a Alma, haveríamos de os ver, talvez mais do que aos outros, monstruosamente desfigurados.
Desde pequeninos nos pergunta a Cidade o que queremos ser quando formos grandes e invariavelmente nomeamos uma qualquer profissão. A Cidade tem, de facto, profissões para distribuir. Nos documentos pessoais de cada um, à medida que vai sendo considerado capaz de realizar qualquer tarefa, logo passa a constar a profissão. A Cidade encaixa as pessoas em profissões, porque a Cidade é uma Torre em construção que precisa de serviços cada vez mais diversificados e especializados. Por isso velhos, doentes irrecuperáveis e todos aqueles que de qualquer forma não se encaixaram numa profissão, só estorvam e são, obviamente, mantidos à margem.
A nossa vocação, se não rompermos esta lógica infernal, poderá manter-se até à morte escondida e esmagada dentro de nós. Porque também a nossa vocação não é deste mundo.
São 6:22.
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