Estão acabando também as minhas preocupações com os absurdos lógicos que tantas vezes pousam nestas páginas. E já não me faz doer como doía a aparente falibilidade do meu ouvido. Deixo-me ir. E este cada vez mais completo abandono ao Desconhecido é que passou a constituir a minha verdadeira segurança.
Estar seguro é deixar-se ir sem receio para o Desconhecido.
Para isso é naturalmente preciso que nos tenhamos desagarrado já de todos os apegos a este mundo, do apego à própria vida. É preciso acreditar que a nossa verdadeira vida é lá, no Desconhecido, que a encontramos.
Não sei, por exemplo, o que Jesus me quer dizer com a citação “Isaías seis, vinte e três” que se formou no meu espírito, mas sei que este Desconhecido me vai encher de vida o tempo que com ele eu ocupar, seja o que for que encontre. Quase sempre a vida mais intensa acontece quando tudo o que encontro é o mais inesperado e ilógico possível. O que importa mesmo é que o nosso coração esteja assim preso àquilo que este mundo desconhece: o que é conhecido, está morto; só aquilo que o mundo não conta entre as aquisições da sua ciência, sobretudo aquilo que nunca aceitará por ser para ele absurdo e ilógico, é que se pode tornar fonte de Vida verdadeira. Não é, decididamente, deste mundo o Reino que procuro e que sei que existe porque Jesus no-lo deu a conhecer e no-lo prometeu em herança.
É assim que, com a exaltante segurança de quem se sente nas Mãos do Senhor das Estrelas, vou abrir a Bíblia em
Is 6, 23 |
Não, Isaías 6 não tem 23 versículos; só tem 13! Leio contudo, agora, este v. 13. Diz assim: “Se restar um décimo da população, esse será também lançado ao fogo, como o terebinto e o carvalho, dos quais fica um tronco quando são abatidos. Mas do tronco sairá uma semente santa”
− Jesus, diz-me se não sou o maior pecador do mundo: eu considerei-me logo como aquele “tronco” que resta do carvalho quando é abatido para ser queimado.
− A tua visão é a do carvalho todo consumido pelo fogo e só tu agarrado ainda com raízes vivas à terra?
− Sim. Raízes muito fortes e muitas, prontas a fazer rebentar do que resta do tronco vários troncos de carvalhos com semente espalhando-se em redor e multiplicando-se rapidamente, sempre em círculos mais alargados, por toda a terra.
− Sabes o que te poderá ter conduzido a essa sensação?
− Justamente aquilo que nesta vigília me levaste a escrever, mais uma vez: eu estou sozinho neste Deserto; tudo está queimado e seco à minha volta. Mas eu tenho muitas e fortes raízes mergulhadas nas profundidades da terra, por baixo desta aridez…
− E que terra é essa de que falas?
− É o Abismo do Teu Coração. Só de Ti me alimento. Rejeito com verdadeira repugnância todo o alimento que me não venha de Ti. Ao mesmo tempo eu próprio me sinto participar nesta Desolação, à superfície. Sou verdadeiramente um tronco serrado pelos construtores da Cidade que queimaram toda a árvore deixando-me assim, quase só raiz agarrada à frescura dos fundos da terra.
− E sentes-te capaz de fazer rebentar de ti novas árvores?
− Sinto. Sinto que continua a percorrer o resto do meu corpo uma seiva tumultuosa acumulando-se em ondas, prestes a fazer espirrar muitos rebentos do tronco decepado.
− Foste ler de novo, mais atentamente, o v. 13. Que viste de novo?
− Que não se trata de um só tronco sobre a terra, mas dos troncos de um décimo da população, se dela restar um décimo.
− É isso que sentes − que da população só um décimo está subsistindo, ou nem isso?
− Sinto, Mestre. À minha volta só mesmo a total devastação se me impõe, para onde quer que olhe.
− Mas admites que haja por aí outros troncos assim como tu, com raízes no Abismo do Meu Coração?
− Pois admito. Mas nunca os vi. Estão certamente todos longe de mim. Sempre me vi único, assim enterrado no Abismo do Teu Coração, à espera da Hora. Não me deixes presumir do que não sou, Mestre. Nunca.
− Sossega. Havemos de acrescentar o cap 6 de Isaías só com aquilo que tu és.
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