É impressionante a facilidade com que me desprendo do meu Deus! Já são 5:31 e até agora nada mais fiz senão divagar por sítios vários, sem rumo, sem objectivos. Sou ainda tremendamente disforme – é o que isto quer dizer. Não, não exagero: a Cidade deformou todo o nosso ser ao encaixar-nos nas suas engrenagens, de tal sorte que inteiramente lhe ficámos condicionados. Deve ser horrível para Deus trabalhar uma coisa destas que continuamente Lhe foge das Mãos para se ir meter sempre de novo no local onde nasceu, na Cidade, como levada por automático reflexo, por uma estúpida mania. Nada tem a ver a Cidade em que sou peça, com o Reino de Deus em que sou filho! Mas mesmo aquele que renasceu já no coração, continua com o corpo amarrado à Cidade por milhentos condicionalismos, como se a Cidade fosse o útero materno a que vive agarrado através da placenta que é o seu corpo.
Que frágil eu sinto ainda a construção de Deus em mim! Pareço-me ainda feto na disformidade dos primeiros tempos de vida, que ainda se não mexe, sem nenhuma autonomia em relação ao mundo envolvente. Dizem-me que tem que ser assim, não nos podemos alhear ao tecido da Cidade. Pois sim, mas mesmo dentro do útero materno já o feto é autónomo, é ele que comanda todo o seu crescimento e eu às vezes pareço-me ainda comandado pela Cidade que assim me impede ou pelo menos retarda o crescimento. Neste momento, por exemplo, interrogo-me: que significa esta absoluta insensibilidade em mim? Sou feto dormindo? Se fosse este o caso, se estivesse só dormindo, não me deveria sentir regalado, feliz? Porquê então este penoso arrastar-me, de cabeça dorida? Fiz alguma coisa que desgostasse o meu Guia e Mestre? Porque não tenho sequer o mais pequeno desejo de comer do Seu Pão?
Sublinhei o 8 nos algarismos iniciais e posteriormente, ao olhar o relógio, a imagem era 5:18. Entendi isto como um Sinal guiando-me à Virgem de Nazaré. Por isso a Ela recorro.
– Mãezinha, Tu sabes o que vai no meu coração e como a minha cabeça está dorida de fazer esforço para me manter amarrado ao Teu Jesus. Olha para isto, Mãe. Não tens pena de mim? Diz-me porque tanto demora o meu coração a ficar vivo, vermelho, incendiado, pulsando vigorosamente, querendo sair do corpo. É assim que eu o imagino, quando ele estiver possuído inteiramente pelo Teu Jesus. Não queres falar comigo, Mãe? Ofendi o Teu Jesus com qualquer coisa? Com aquele vinho que bebi à refeição, com aquele bagacito, com aquela cerveja ao deitar? Estava muito calor, Mãe, e eu tinha sede. Podia ter bebido água, é certo, mas porque me sabe melhor a cerveja, que é um produto da nossa Cidade? Como faço? Abandono todos os prazeres que a Cidade proporciona? Passa a Tua Mão no meu rosto, Mãe, ao menos, para eu não me sentir assim abandonado e frio. É Domingo e já são 6:43, quase há duas horas que aqui estou ajoelhado, à procura, à procura, à procura, pedindo, pedindo… Porque é que nem Tu me aqueces o coração? Olha, Mãezinha, diz então só ao menos ao Teu Jesus que fique sossegado: eu não vou desistir.
São 6:49.
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