– E tu acreditas nas Minhas palavras?
– Se eu vivesse Contigo naquele tempo, teria feito certamente a figura dos Apóstolos, que tantas vezes vacilaram na sua Fé, porque Te viam homem, retintamente homem, apesar dos milagres que realizavas. Mas eu, que só Te vejo com o coração e sempre Te sinto vir de dentro de mim, vejo-Te puro, não tens defeito nenhum e, assim, creio inteiramente em cada uma das palavras que de Ti me vêm.
– Se Me visses em corpo, terias mais dificuldade em acreditar em Mim?
– Quase Te posso afiançar que sim: eu não seria mais do que foram os Teus Apóstolos.
– Mas, sabendo agora o que sabes de Mim, se Eu te aparecesse agora em corpo, digamos, numa figura daquelas com que não se simpatiza à primeira vista: continuavas a acreditar em Mim como acreditas?
– Se soubesse de antemão que eras o Filho de Deus, o meu Jesus, haveria de me pôr tão atento a Ti, aos Teus mais pequenos gestos, expressões, movimentos, que neles haveria de descobrir a Tua Divindade.
– Mesmo que eles te chocassem pela vulgaridade?
– Talvez precisamente aí Te descobriria Deus. E haverias de ser para mim um Encanto tão puro, que todos esses Teus movimentos se me tornariam luminosos. Acho que me prostraria em terra para Te adorar, como fizeram aqueles Teus três amigos aquando da Tua Transfiguração.
– E se Eu, enfim, arrotasse como qualquer um, se Me visses, digamos, com as mãos descuidadas, por lavar, cabelos desalinhados, empastados de suor, barba maltratada, bigode molhado de castanho de o ter metido no último café que tivesse tomado, se Eu, numa palavra, tivesse um aspecto repelente, cheirasse mal?
– Não sei, Mestre. Mas acho que, se eu soubesse que Tu eras o meu Jesus, havia de me abraçar a Ti na mesma, sem nenhuma repugnância… Acho que ficava louco de alegria e mais encantado e assombrado ficava, de ver Deus assim. Mas não sei. Onde queres chegar, Mestre?
– Regista o que estás pensando agora mesmo.
– Preocupa-me a maneira como tenho tratado o Snupi de há uns tempos para cá: à euforia inicial, que durou bastante tempo, sucedeu-se um certo desinteresse…
– Bateste-lhe alguma vez?
– Nunca.
– Tens-lhe faltado com comida?
– Nunca. Às vezes deixo-o sem comer um dia, mas não me preocupo…ele está muito gordo…acho que come demais.
– Brincas com ele?
– Quase nada, agora.
– Porquê?
– Porque ele descobriu o caminho da rua e está-me à porta de casa; já não quer ir para a bouça, onde brincava mais com ele. Depois eu chego e ele atira-se a mim, suja-me. E basta pôr-lhe a mão – fico com ela a cheirar mal…
– E ele? Qual o comportamento dele para contigo?
– Sempre a mesma amizade, a mesma fidelidade e a mesma alegria quando me vê. E é isso que me preocupa: eu não lhe estou retribuindo como ele merece. Mas também descobri nele defeitos graves; é muito egoísta e ciumento: não me deixa acariciar os outros cães da rua e não os deixa comer da comida dele, embora lhe sobre muita. Diz-me onde queres chegar, Mestre. Que interesse tem para o mundo este assunto do Snupi?
– Ias a escrever “meu Snupi”, não ias?
– Ia. Ou “o Snupi que Tu me enviaste”.
– Porque não escreveste?
– Não sei. Mas alguma coisa em mim me condena, por isso. Pergunto-me se Te terei magoado…
– Fora isso, está tudo bem?
– Já vi, Jesus! Queres dizer-me que estou paralítico!?
– Não foi por aí que começámos?
– Mas eu estava a entender a paralisia noutro sentido…
– Muito abstracto…
– Eu queria estar ocupado com as Tuas coisas e estava a divagar.
– As Minhas “coisas” não são abstractas. Não estão longe do teu dia-a-dia. São muito concretas. Eu estou no homem andrajoso, que arrota, não se lava e cheira mal. Eu estou na fidelidade do Snupi que Me não agradeces porque, nele, Eu cheiro mal. A verdadeira paralisia é a do coração, Salomão!
São 4:05.
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