Não me larga o receio de me desprender do Mestre. E não parece ter
sentido esta sensação, depois de tanto caminho percorrido, de tanto tempo de
estreito convívio a sós com o meu indefectível Companheiro. Uma insegurança
assim, parece até uma ofensa ao meu Amigo, na medida em que poderia manifestar
uma estranha ineficácia do Amor que sempre digo envolver esta solitária
caminhada de nós os dois. Mais uma vez, portanto, uma iniciativa do Mestre
estaria sujeita a terminar em fracasso.
- Explica-me este fenómeno, Jesus.
- Não se trata do medo próprio do ciúme?
- Não: no ciúme o medo é que o outro se desprenda de
nós e aqui é ao contrário: eu é que tenho medo de me desprender de Ti.
- Tenta dizer-Me a que se deve esse medo.
- É certamente ao facto de Tu Te teres tornado o meu
único interesse, de toda a minha vida estar agora dependente de Ti: se Te
perdesse, isso seria para mim a verdadeira morte.
- E porque te haverias de desprender de Mim? Que poder
é esse que te conseguiria desamarrar da Fonte da tua vida?
- Agora, por exemplo, é esta fragilidade geral em que
me vejo caído: tenho medo de me pôr a dormir, quando deveria vigiar. Às vezes
esta fraqueza parece até provocar um certo desinteresse pelas coisas do Céu… Só
apetece sair do posto de vigia e ir descansar…
- E a Mim, onde Me vês, nesses momentos?
- Nem sei onde estás, às vezes. Parece que Te foste
embora, ou que estás aí para algum canto, atrás de qualquer duna deste Deserto,
também caído, incapaz de Te levantar. Nessas ocasiões, pareces estar também
como eu: meio desinteressado, desejando apenas que Te deixem descansar.
- Não Me vês, portanto, sempre em pé, firme, numa tensa
atitude de vigilância?
- Estranhamente, não: vejo-Te quase sempre como eu, às
vezes mais prostrado ainda do que eu. Não há, de qualquer forma, situação
dolorosa em que me encontre, sem que Te sinta vivê-la comigo. Nunca Te
encontrei descansado, ou comodamente instalado quando eu próprio me encontrava
desfalecido de dor e cansaço. Sobretudo nunca Te vi falar comigo de cima para
baixo.
- Dói-te esse medo de te desagarrares de Mim?
- É claro, Mestre! Já Te disse que não encontro em mim
medo maior.
- Repara então no que acabaste de escrever. Disseste
que nunca Me viste, desde que viemos os dois aqui para o Deserto, numa situação
menos dolorosa que a tua. Trata-se de uma excepção, desta vez?
- Não tinha reparado nisso!… Não, não Te vejo
recriminando-me de nada… Mas é tão difícil admitir o que me estás sugerindo…
- Escreve o que te estou sugerindo.
- Que a Tua dor é igual à minha: Tu também, por causa
do Teu extremo cansaço e fraqueza, tens medo de Te desagarrares de mim!!
- E então? Não achas isso possível?
- Parece um absurdo em Ti… Tu nunca, em momento nenhum
da Tua Incarnação, podes deixar de ser Deus!
- Não estou desta vez então junto da tua dor, vivendo-a
contigo, ao teu nível?
- Não… Não posso admitir qualquer excepção depois de Te
ter visto passar pela situação de criminoso mais desprezado que Barrabás.
- Então diz-Me: Eu também tenho medo de Me desagarrar
de ti?
- Tens! É um medo possível à natureza humana: não há
dor no homem que Tu não tenhas assumido. E assumi-la é passar por ela.
- Mas há ainda uma coisa Eu te queria perguntar: tu és
para Mim o que Eu sou para ti - a Fonte de toda a tua vida, conforme
disseste?
- Devagar, Mestre! Pressinto que me vais levar a
escrever a maior das heresias até hoje… Eu não posso ser a Fonte da Tua vida,
meu Amor!
- Não? Não foi por ti que Eu Me fiz este verme morrendo
esgotado de forças neste Deserto sem pinga de água?
- Como, Mestre?! Tens medo de desistir de me salvar?
- Sabes porventura que grandeza tem, para Mim, o amor
que já Me deste, ao aceitares vir Comigo aqui para este Desterro?
- E tens medo de Te desagarrares deste amor?
- Não sabes já, Meu amigo, da secura de coração que se
atinge nestas areias? Não sabes já que o calor e a falta de ar nos desamarram
de todo o interesse à nossa volta e só nos sentimos desprender-nos literalmente
de tudo, até da consciência da Fonte de que depende a nossa vida? Não é isto a
morte - o desamarrar-se de tudo-tudo-tudo?
- Foi isso também o que Te aconteceu no Getsémani - tiveste
medo, por instantes, de perder o Amor do Teu Pai? Tiveste medo de fraquejar, de
Te desamarrares da Sua Vontade?
- Eu tive todos os medos, no Getsémani.
- Então quando disseste Faça-se a Tua Vontade, isso foi
só o regresso à confiança no Teu Pai, depois do medo de d’Ele Te desprenderes?
- Isso foi um novo Dom do Meu Pai.
- Bem hajas, Jesus! Estou agora reconhecendo o Teu Dom!
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