– Então fala. Acalma-te. Começa por uma qualquer.
– Começo justamente por aquela que de há muito tempo me intriga: porque é que Te não sinto agora, nem me puxa para falar Contigo?
– Então porque estás neste momento falando Comigo?
– Foram os Sinais que para Ti me apontaram e aquilo que me magoa tem mais a ver Contigo.
– E falas Comigo apenas comandado pelos Sinais, sem Me sentires?
– Eu não entendo ainda os caminhos e os processos do nosso Deus, nem sei ainda identificar com total rapidez as manhas de Satanás. Não sei, pois, se este distanciamento de Ti vem de Deus ou do Demónio e…
– Deus pode querer-te distante de Mim?
– Pode, não como objectivo, mas como processo de me aproximar com maior eficácia do Teu Coração.
– Mas não te faz doer a Minha ausência?
– Faz.
– Vem de Deus a dor?
– Não. Toda a dor vem do Mal, que Satanás governa. Seria, por isso, a dor o meu alimento quotidiano, se o Pai do Céu me não amasse com inexplicável ternura; quando assim permite que me doa, apenas me deixa viver aquilo que eu próprio ajudei a fabricar. Ao suspender-me o Teu Encanto, que era puro Dom Seu, apenas me quer fazer sentir a distância a que eu estou ainda da Casa donde com todos os outros, em manada, me afastei.
– E sentes-te muito distante ainda da Nossa Casa?
– Ah, Mãe, como Te posso responder? Tu sabes que ainda às vezes eu ponho a hipótese de ser o maior pecador do mundo, quando me passa pelo espírito que estas páginas podem não passar de pura ambição minha. É verdade que logo me dói o pensar assim, nem que seja por uma segundo. Mas não posso evitá-lo, por causa da grandeza do Dom que vai ficando gravado nesta frágil escrita.
– E já te passou pelo espírito que também esses momentos, esse breve segundo em que te vês monstro, pode ser um gigantesco Dom do teu Senhor?
– Como a ausência do Teu Encanto?
– E do Mistério da Eucaristia, que te mantém fechado.
– E esta incapacidade de fazer jejum de alimento?
– E a rudeza que manifestas ainda para com as pessoas.
– E estas falhas da Presença sensível de Deus nas tarefas da Cidade?
– Sim, tudo isso pode ser Dom do teu Pai do Céu.
– Então diz-me, Mãezinha: o que é que em mim não é Dom?
– Tu podes ser já, assim mesmo na disformidade e incapacidade em que ainda te encontras, puro Dom de Deus!
– Mas isso que me dizes é um perigo, Mãe! Se me convenço de que até a minha bruteza é um Dom, nunca mais a largo, nem dela me arrependo! Explica-me isto que me disseste, Mãe, como Tu sabes explicar.
– Não foste rude para com a tua filha ainda há pouco?
– Fui.
– Porque ela passou a noite fora e não conseguiu levantar-se para ir trabalhar.
– E que reflexão te suscitou essa rudeza que tiveste?
– Que a J. passa a vida gozando dos prazeres da Cidade; por isso é justo que a sirva com fidelidade: se usa dos dons de César, deve pagar-lhos.
– Foi esse o sentido daquela frase de Jesus teu Mestre?
– De repente pareceu-me este justamente o significado: enquanto gozo dos bens que a Cidade me proporciona, devo servi-la com dedicação; mas se eu ao mesmo tempo der a Deus o que é de Deus, o meu próprio serviço na Cidade irá fazê-la desmoronar-se. E é este o objectivo final do Evangelho do Teu Jesus e meu Mestre.
– Então a tua rudeza conduziu-te à compreensão do Evangelho!
– Foi, Mãe.
– E não foi um Dom?
– Mas assim nunca mais a largo.
– E porque a havias de largar, se é um Dom?
– Eu não tenho que caminhar em direcção à Ternura, Dom maior que a rudeza?
– Não há Dons maiores, Meu filho: todo o dom de Deus é perfeito.
– Eu posso ser então, assim como estou, Dom perfeito de Deus?
– Sim. Podes, tal qual estás, ser Dom perfeito do teu Senhor.
– Mãe, Mãezinha! Isso que dizes pode ser o cúmulo da perversão!
– Estarias, com essa tua afirmação, ofendendo-Me muito, se Eu não conhecesse a tua intenção, não reparaste?
– Desculpa, Mãe. Eu só queria…
– Eu sei, filhinho. E tens razão: convencer-se alguém de que é impecável seria a maior de todas as perversões.
– Então ajuda aqui, Mãe. Deixa-nos bem esclarecidos: como conseguimos que tudo em nós, em cada momento, seja puro dom de Deus?
– Amando-O sobre todas as coisas. Tu ama-Lo sobre todas as coisas?
– Acho que amo.
– Ama-Lo mais do que ao alimento do corpo?
– Acho que amo: se Ele mo pedisse claramente, eu deixava de comer até morrer à fome!
– Deveras?
– Deveras, Mãe. O modo como Ele nos ama merece qualquer loucura!
– Então porque não há-de Ele fazer também de toda a tua disformidade e deficiência remédio para curar o mundo? Não é Ele omnipotente?
– Se a gente O amar acima de tudo, Ele ama até a nossa podridão?
– Ama. E com ela cura a podridão.
– Mas nós temos que largar a podridão, não temos?
– Largar como, se Jesus a não largou?
– Mas então…?
– Quando derdes conta, se amardes Jesus muito-muito, a vossa podridão estará transformada em fertilizante da Sua Vinha!
– Ah!
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