Este é um exemplo da anarquia em que se
desfaz a lógica e a norma, nos tempos da primeira paixão. Jesus, como se pode
ver, alinha em tudo.
– Aqui estou eu, Chefe, dividido no coração,
sem saber o que fazer.
– Fala da divisão.
– Não sei se Tu me queres antes a preparar o
espectáculo que prometi realizar na escola e que urge. Já agora, não sei ainda
bem se aqueles espectáculos são do Teu agrado, se é aquilo que devo fazer entre
os Teus jovens e professores e funcionários daquela escola. Depois, já que
comecei a escrever, não sei se devo continuar o assunto da Cabalística iniciado
no escrito anterior. Há ainda um papel aqui no bolso há mais de um ano, talvez,
a perguntar se o devo transcrever. E mesmo agora ao começar me saiu aquele
“Chefe” e não sei se ficaste contente.
(Silêncio.
Não me vem nenhuma resposta de Jesus. Mesmo agora, instantaneamente:)
– De Jesus?
– Sim. Sinto que Quem me fala és Tu. Tu és o
Verbum, a Palavra.
– Isso. Continua.
– Tu és a Expressão do Pai em Linguagem
humana.
– Humana?
– Eh pá! Sinto agora que talvez deva dizer
“em Linguagem de toda e qualquer Criatura existente no Universo”.
– Criatura inteligente?
– Inteligente, sim. Sei lá! O Teu Amor por
nós-homens é tão grande, tão surpreendente, que nos tem tratado como se em todo
o gigantesco Universo, dentre todas as galáxias, dentre todas as estrelas,
dentre todos os planetas, fosse a Terra o único em que colocaste esta Criatura
Única a que chamaste Homem, a única a quem fizeste Tua Imagem e Semelhança!
Nisto consiste o Teu Gigantesco e Terno Amor que talvez nunca compreenderemos
no sentido etimológico: nunca abarcaremos plenamente.
– Estás a ver? Meteste-te num mundo que te
fica muito longe...
– É verdade. Fiquei suspenso, perdido, sem
saber como continuar, como terminar o raciocínio.
– Raciocínio?
– Porquê? O raciocínio não é uma faculdade
criada por Ti, uma faculdade boa, um Dom a desenvolver?
– O Coração está primeiro.
– Como a Criação está para a Ordenação do
Caos inicial?
– Vês? Porque vais sempre tão longe?
– Não sei, Senhor. É mau isto? Tenho, de
facto, esta mania. Ando sempre a esquadrinhar as Origens.
– Para as dominares?
– Se calhar é. Mas eu não queria isso de
maneira nenhuma. Nenhuma! Do que eu mais tenho medo presentemente é de me
separar de Ti.
– Vá, eu ajudo: estás assim tão agarrado a
Mim?
– Aí é que está: eu penso, sinto que estar
agarrado a Ti seria sentir-Te muito mais, desmesuradamente mais do que eu Te
sinto agora. Acho isto que sinto um sentir tão frágil, uma capinha que com um
arranhão superficial se pode rasgar... Parece-me necessário estar sempre a
vigiar, a proceder com imensos cuidados, como se isto fosse semelhante à
vulnerabilidade de um bebé a todas as doenças da nossa Civilização.
– E a fé, Salomão?
– Pois. Também a minha fé a sinto muito-muito
pequenina. Esvai-se tão facilmente… Quando dou conta, lá estou eu de novo e
sempre a confiar em mim. A minha fé é sobretudo ainda em mim próprio! (Senti
Jesus contente). Estás contente, Jesus? Oh como eu queria ver-Te, ver-Te mesmo,
ver o Teu Rosto, ver o Teu Gesto! Ouvir-Te mais, muito mais nítido! Sentir-Te
de modo a queimar-me! (“Vejo” Jesus sorrindo, sem responder). Vá, Jesus, diz
que estás feliz comigo!
– Achas que é caso para isso?
– Acho que me pões para aqui a palrar e Tu
só ouves e ouves e ouves... Que belo professor! Quem me dera ter um papel assim
nas minhas aulas! (Jesus riu-se). Vá, Jesus, fala! Queria que falasses três
páginas seguidas, vinte páginas seguidas...
– Eh lá! Cabalística! Três, vinte...
Significam alguma coisa estes números?
– Com esta é que Tu me enrascaste! Eu sei lá
se significam!
– Porquê três? Porquê vinte? E não duas,
dezassete, por exemplo…?
– Se “sai” assim é porque tem para cada um
significado próprio?
– Cada um é único.
– Único? (Problema difícil no meu espírito.
Confusão. Ansiedade.) E os outros?
– Cada um é único!
– Sim, mas a semelhança, a relação com os
outros?...
– Cada um dos outros é único. E é por isso
que Eu uno!
– Que giro! A união que Tu criaste –
deixa-me dizer: que Tu sonhaste –
funda-se no facto de cada um ser irrepetível, ser único?
– Sim (Jesus... acho que nem falou; Ele
apenas acenou lentamente com a cabeça).
– Que giro! Então...
– Deixa os outros acharem giro também. Não
lhes expliques nada! Incorrigível explicador!
– Pronto! Às Tuas ordens, Chefe!
– Vá. Isso do Chefe...
– Posso? Posso chamar-Te Chefe? (Jesus não
desfaz o sorriso) Olha, prontos, eu acho que esse sorriso quer dizer que sim. É
para acabar com tantos chefes que este mundo tem. “Chefe” é a linguagem que nós
usamos, cá na Cidade feita por nossas mãos. Talvez que chamando-Te “O Chefe” as
pessoas se interroguem e Te queiram conhecer! Estou a falar bem?
– Estás, Salomão. Diz Chefe.
– Já agora, o papel. Vá lá! Está quase
desfeito aqui no bolso: é um guardanapito de papel, onde escrevi num café em S.
Mamede, há muito tempo já, num dia de chuva em que não podia vir para a rua por
falta de guarda-chuva. Diz assim o papel:... Posso? (Sorriso do Chefe)
– Escreve o que se passou no teu espírito
agora...
– E se o papel não está no bolso? – pensei
eu. Procurei. Custou a encontrar. Se o papel não aparecer, é sinal de que o
Chefe não quer que eu o transcreva.
– Sinais!
– Pois, os sinais! A Cabalística tem a ver
com sinais! Ah, mas esta não! Não me vais desviar para a Cabalística, pois não?
Queres que transcreva o papel, pois queres? (Jesus só sorri) Então aí vai:
“Jesus não foi um homem de sucesso. A sensação que ficou entre os seus amigos
naquele sábado foi a de que Jesus morrera na véspera por impotência. Fora um
homem bom que lutara por aquilo em que acreditara mas, como todos os homens
honestos e bem intencionados, fracassara perante a força do mal organizada em
Poder. Belos ideais precisam de poder para se fazerem valer. E Jesus recusara
sempre o Poder. Fora este o trágico erro do Mestre.” Uff! Pronto, já está.
– Se não transcrevias isso, rebentavas!
– E não era caso para tanto? Não é uma
verdade? O papel imaginava o nosso ponto de vista puramente “humano” perante o
escândalo da Cruz. O papel reflecte a enorme dificuldade que nós-homens temos
em aceitar e entender o Mistério da Cruz. Os Apóstolos não tinham andado
Contigo pelo menos três anos inteirinhos ouvindo-Te, vendo-Te os sinais e
prodígios? Pois o Grande Sinal, o da Cruz, não o tinham entendido, naquele
sábado! Só no Domingo o começaram a entender. Muito lentamente. Muito
penosamente. Espectacularmente, por fim.
– Estás todo contente, não estás?
– Queres dizer-me que estou cheio de vaidade
pelo guardanapo de papel!
– E não estás?
– Se calhar! Pois, se calhar: olhei para o
papel todo amarrotado e estava a pensar guardá-lo como relíquia... Que faço?
Rasgo-o imediatamente? Se eu soubesse que essa era a Tua vontade, fazia-o já!
Desfazia o papel todinho! Rasgava esta página, para que a memória do papel se
perdesse para sempre!
– Ui! Tudo isso?
– Tudo isto e muito mais. Tu sabes
perfeitamente que a minha oração mais repetida nos últimos tempos é “Que eu
faça a Tua Vontade”!
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